quarta-feira, 3 de setembro de 2008

O ÓDIO CONTRA O ÍNDIO


A indisposição das pessoas em relação às mulheres pode acabar completamente um dia. A mulher é mulher. O preconceito contra o negro pode diminuir. O negro é negro. Mulheres e negros tem feito um esforço grande no sentido de, sendo mulheres e negros, serem aceitos no grupo dos “humanos”. Em algumas democracias ocidentais esses dois grupos, nos últimos anos, têm conseguido forjar equipes de pressão e influenciar política e juridicamente as sociedades em que vivem, a fim de serem tratados de um modo mais igualitário.

Esses dois grupos contam com uma vantagem sobre outro grupo que também luta por direitos, o dos índios. Em cada país em que vivem, mulheres e negros tem conseguido se mostrar antes oriundos deste país que propriamente mulheres e negros. Assim, os negros americanos conseguiram se mostrar antes americanos que negros, o mesmo ocorrendo com as mulheres. No Brasil e em outros países isso também tem ocorrido. Isso dá vitórias. Mas este não é o caso do índio. Por mais paradoxal que seja ele não tem conseguido se mostrar brasileiro!

Se você conversar com uma pessoa qualquer na rua, nas grandes capitais, verá facilmente o quanto é difícil para as pessoas entenderem que o índio é antes brasileiro que índio. Diferentemente do negro e da mulher, ele mantém um sotaque, um modo de vestir e um aspecto físico que nós, os que se acham mais descendentes do colonizador ou do imigrante europeu (ou asiático), não conseguimos compreender. A mulher colocou um terninho. O negro colocou gravata. Ambos falam a língua que nós todos falamos. Mas o índio parece insistir em ser diferente. Como ele não seria? E alguns conservadores acreditam que, por conta da “proteção do Estado”, ele tem privilégios. Então, tudo se torna mais difícil. Tudo é mais complicado para o índio, pois ele tem um estigma que a mulher e negro não possuem: ele é tomado como ridículo.

A mulher era vista como burra. E se era inteligente, era puta. O negro era visto como indolente, e se começava a querer fazer as coisas, era tomado como malandro ou ladrão. Isso tudo ainda está presente na nossa sociedade, pois a nossa maneira de conversar não se alterou de modo suficiente para darmos passos para fora desse círculo cruel. Mas, pior do que burro, puta, vadio ou malandro é o estigma de ridículo. O índio é ridículo – é assim que ele é assumido como índio por uma boa parte de nossa sociedade. E caso ele tente não ser ridículo, ele é tomado como falso índio. Ele tem de andar de tanga e cocar na rua, e jamais saber falar o português. Caso ele vista uma calça jeans e tente falar o português, então já fica um pouco mais difícil de ser chamado de ridículo; e se ele não pode mais ser ridículo, eis que se torna vítima do ódio. Todo aquele ódio que há pouco tempo a direita política tinha para com as mulheres inteligentes e os negros orgulhosos, agora se volta contra o índio.

Alguns imaginam que isso é devido ao fato do índio estar lutando por terras que outros querem. Trata-se de uma luta por riqueza. Há sim esse componente. Mas a luta mais profunda ainda é a luta da visão do colonizador, a visão do capitão do mato, contra a visão do colonizado, contra a visão do indígena, os primeiros brasileiros.

Raposa Serra Dourada é um caso. Talvez uma pessoa como Denis Rosenfield, que ilegitimamente usa o título de filósofo – para azar nosso –, realmente fale o que fala apenas para defender a riqueza dos poderosos. Afinal, os intelectuais da academia, não raro, sobrevivem nela emprestando sua pena aos grupos de poder na situação ou de poder na oposição. Isso vai passar. Um dia Rosenfield se aposentará e arrastará chinelos de modo solitário pela sua casa, e nenhum dos fazendeiros que hoje ele apóia se lembrará dele. Outro ocupará a cátedra seqüestrada por herdeiros de Mussolini. O problema não é esse. O problema é que quando ele se aposentar, ainda os vocabulários do colonizador e do capitão do mato poderão ser tudo que conhecemos para falar do índio.

O que isso significa em termos históricos e humanos? Só uma coisa: a vitória da crueldade. A vitória da má vontade. A permanência da vida não generosa.

Uma coisa que precisamos aprender sobre o convívio humano é que, não raro, as questões nossas não poderiam se deixar contaminar tanto pela disputa política e ideológica quanto se contaminam. Nós, filósofos – os que não abdicaram da filosofia –, deveríamos perceber que o ódio da direita política contra minorias e, no caso, contra índios, não é um ódio da direita política enquanto facção política. É um ódio que extrapola isso. É um ódio que pode estar no coração de pessoas que não se identificam com a direita política. A direita política, como o caso de Denis Rosenfield, faz o papel de trombone – faz barulho. Mas o problema não é o barulho. O problema, no caso, é o silêncio.

Os silenciosos é que são os mandatários do mal. Pois os silenciosos são os que falam no cotidiano, ou seja, os que sussurram. Os que sussurram são os que levantam a voz em filas públicas. Sabe aquele velhinho aposentado que está marginalizado, e que na fila do banco brada contra toda política generosa e, então, aproveita para dizer que “índio não existe, que vão ganhar terra do governo que é maior do que um país” etc. Sabe esse tipo? Ele é o Rosenfield fora da universidade. Ele não leu os livros que o Rosenfield leu sobre Descartes. Mas eles, apesar de tudo, pensam de modo igual. Eles sentem de maneira igual. Eles empurram outros para a má vontade, para a política sem generosidade e, pior, eles fecham junto deles um anel, o anel que engloba também o jovem fascista, todo aquele que não consegue perceber que é arauto da crueldade.

O jovem rico que atira uma garrafa do seu conversível em um travesti na rua. O jovem pobre que se junta em bando para bater e até matar o outro que “é do bando de lá”. O jovem de classe média que fez medicina, mas que atende primeiro os brancos na fila. O jovem pobre que consome droga e que ataca a mãe desesperada que quer vê-lo fora daquele caminho. O jovem rico que molesta a empregada doméstica. O jovem pobre que bate na irmã porque ela engravidou. O jovem rico que ateia fogo no índio e diz que “pensava que era mendigo”. Eles são os que Denis Rosenfield alimenta. Por isso, quando Denis estiver de chinelos, aposentado em sua casa, ele não receberá a visita de ninguém da UDR, que ele defendeu. Pois os homens da UDR já terão arrumado outro para fazer vingar o ódio. E não irão dar bola para quem “só criou confusão”.

Felizmente, esses homens não vão dizer que eles contaram com um filósofo. Eles não vão se lembrar disso. Eles ainda manterão a idéia de que o filósofo autêntico não estaria do lado deles. E nisso, terão feito o único juízo certo de suas vidas.

Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo

Nenhum comentário: